Grande Circuito Italiano, uma história de Pedro Costa
“As surpresas acontecem quando menos se espera”
Foi no grande circuito Italiano, na cidade de Roma, que ao virar da esquina, logo após termos deixado o autocarro na via Giovanni Amendola, dobrado a esquina com a via Cavour e entrado na primeira porta à nossa direita para o hall de um hotel, quando para minha surpresa, tinha acabado de entrar num edifício classificado pelo Ministério do Património Cultural pelo seu valor histórico e arquitetónico; era nada mais, nada menos o hotel Bettoja Mediterraneo, um monumento, a onde iria pernoitar por duas noites seguidas!
E não era por acaso que se encontrava, à nossa chegada, uma equipa de filmagem a arrumar os equipamentos recém usados na rodagem de uma cena para um filme na sala do grande hall do hotel, pois foram já vários os realizadores que se deixaram encantar pela imaculada atmosfera da época dos anos 30, que o hotel ainda preserva. Como exemplo, o filme de género biográfico sobre Carosello Carosone realizado por Lucio Pellegrini em 2021 e baseado na vida do músico Renato Carosone, em homenagem ao centenário do seu nascimento.
“Como é que surgiu o Hotel Mediterraneo?”
Foi fundado pelo meu trisavô. Antes disso, havia um outro hotel, que se chamava “Lago Maggiore”: era um edifício de quatro andares que datava de 1875, um dos edifícios construídos na Via Cavour imediatamente após a Unificação de Itália. Para o 20º aniversário do fascismo, estava a ser preparada a exposição E42, a exposição Eur, a antiga estação Termini devia ser demolida e todos os edifícios com pórticos da Piazza del Cinquecento deviam ser demolidos. A Via Cavour tornar-se-ia a principal artéria de ligação entre o centro de Roma e o novo bairro. Por isso, o meu avô Maurizio decidiu reconstruir o hotel.
Passagem transcrita de um artigo da revista Artribune intitulado “Riapre a Roma l’Hotel Mediterraneo. Restaurato uno degli alberghi più affascinanti della Capitale” entrevista ao director do hotel, Maurizio Bettoja.
E daqui parti, à descoberta da Itália dentro do “meu” hotel…
… não de chave na mão, pois como podem ver na fotografia alusiva ao balcão da receção, já não há chaves penduradas no belo chaveiro de cobre e verde esmeralda lembrando uma megalópolis de coleópteros, mas parti com a atenção redobrada nos preciosos elementos que revestem e vestem o elegante hotel Art Déco.
Apressei-me a documentar, através da fotografia, a elegância do lugar, e aqui nas histórias em viagem, espelhar os múltiplos detalhes de um lugar preservado, parado no tempo.
Breve resenha histórica:
O Hotel Mediterraneo, encomendado em 1930 por Maurizio Bettoja e projetado em 1936 pelo arquiteto Mario Loreti para o E42 (Exposição 1942, depois modificado para EUR do acrônimo de Esposizione Universale di Roma), é um exemplo de arquitetura racionalista e um dos melhores exemplos de Art Déco em Roma, classificado pelo seu valor histórico e arquitetónico. Com 50 metros de altura, 10 andares e 242 quartos, é o edifício mais alto do Esquilino e o seu estilo é inspirado no luxo austero e monumental típico dos anos de 1940.
O átrio apresenta bustos em mármore de imperadores romanos e mosaicos que retratam a história de Ulisses. A área da receção está decorada com painéis de madeira de nogueira, grandes janelas de vidro e pelo mármore bardiglio (origem Italiana), note-se que o tema do mar é recorrente em todo o hotel.
Quatro degraus acima do átrio da entrada, revestido a mármore, conduzem à sala comum, decorada com grandes candeeiros e uma representação em madeira incrustada na chaminé da lareira, do Prometeu de Capizzano, desenhado por Loreti.
Na sala comum, virada à Via Cavour, encontra-se a sala dos mapas: numa das paredes, um grande mapa do mar Mediterrâneo, rodeado de signos do zodíaco, pintado a têmpera sobre pergaminho por Achille Capizzano; na outra parede, um grande painel de madeira incrustada com uma alegoria da escritura através da história, do mesmo artista. Toda a sala apresenta um belo friso de estuque com representações marinhas.
À direita da sala comum entra-se na sala do bar 21 onde se encontra o balcão do bar concebido por Loreti com mosaicos de Franco D’Urso e cristais Venini – marca de destaque do vidro em Murano. Na parede esquerda do bar encontra-se um embutido, um painel em que está representado um grande rébus enigmático: três ventos soprando – o Scirocco, Libeccio e tramontana sobre uma mulher e um diabo que a tenta… enquanto uma tesoura corta o cabelo de outra mulher.
A partir do bar 21, chega-se à sala Polene, onde servem os pequenos-almoços, inspirada nas marinhas com vigas de carvalho apoiadas em mísulas esculpidas em sereias de carvalho, tal carranca, ou figura de proa de navio sobre o chão em ladrilhos pintados à mão com distintos tons de azuis, ladrilhos produzidos na vila de VIetri sur mare, na costa Amalfitana, simulando o mar banhado pela luz natural filtrada através das três altas janelas compostas de múltiplos vitrais de relevos concêntricos, tal câmara de popa de galeão. Dois grandes candeeiros circulares de bronze decorados com sereias pendem do teto, e acesas, as arandelas de bronze adornadas com 3 pequenas figuras de sereias de madeira, iluminam a sala ladeada de altos lambris, também eles de carvalho. A vantagem desta nave, é que não balança, e o seu ar encontra-se preenchido por aromas emanados do apetitoso pequeno almoço.
Na Sala San Giorgio, em continuidade com a decoração da Sala Polene, encontra-se o mosaico representando São Jorge, da autoria do artista esloveno, nascido em Trieste, Augusto Černigoj. Contigua, encontra-se a sala do Mosaico e que deve o seu nome à grande composição que representa uma caçada medieval.
Dois outros mosaicos estão situados por cima das portas do elevador e representam a partida e o regresso de Ulisses: o sol no mosaico de Ulisses prestes a partir está a leste, enquanto no episódio de regresso está posicionado a oeste. Ambos os mosaicos são obra do pintor italiano nascido em Catânia, Franco d’Urso.
Todo o mobiliário estilo Art Déco, polido com álcool e goma-laca, foi desenhado pelo arquiteto Loreti. A iluminação, de sua autoria, foi confiada à Fontana Arte onde colaborou o arquitecto Gio Ponti e Gustavo Pulitzer, enquanto os lustres em vidro de Murano são da Venini.
No fim da imponente escadaria principal de Loreti, caracterizada por monoblocos independentes de mármore calcatta (localidade de Borghini, região de Carrara) e uma balaustrada de colunas de mármore vermelho Levanto (distribuição e exploração mundial), chega-se ao esplêndido terraço do 10º andar onde uma vasta vista se estende por Roma, e se descortinam o Quirinale e São Pedro.
E como a vida é cheia de surpresas, também foi no 10º andar no hotel Royal Nápoles, na primeira estadia do grande circuito Italiano, que me encontrei pela primeira vez com “Uma piscina no telhado” – alusão ao titulo do projeto publicado em 1954 na capa da revista Domus – do arquitecto Gio Ponti, o autor que desenhou muitos dos candeeiros do hotel Mediterraneo, e que também foi o autor da belíssima escadaria da universidade de Pádua, onde também tivemos a oportunidade de poder visitar já com vistas aos Alpes fronteiriços.
“Detesto piscinas rectangulares. Os lagos, os rios são rectangulares?” Gio Ponti.
Crédito Imagem: Pedro Costa